O Preço Oculto da IA: Os Microtrabalhadores Invisíveis por Trás da Revolução Algorítmica

Um mergulho crítico no lado oculto da inteligência artificial: os microtrabalhadores invisíveis que alimentam, corrigem e até simulam sistemas algorítmicos. O texto expõe a precarização global, com destaque para o cenário brasileiro, e revela as contradições entre o marketing da autonomia e a realidade de exploração, adoecimento e invisibilidade.

DIREITO DO TRABALHOTECNOLOGIA X DIREITO

Dr. Leal

9/19/20256 min read

Foto gerada por inteligência artificial - uma ironia que refuta o texto.

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A inteligência artificial é vendida como o futuro brilhante da humanidade, mas tem um detalhe que raramente aparece nos pitchs tecnológicos: ela só existe porque uma multidão de trabalhadores invisíveis está ralando, em silêncio, para treinar e corrigir esses sistemas. É a parte feia da revolução algorítmica, convenientemente escondida debaixo do tapete.

Um seminário entitulado "A Inteligência Artificial no Mundo do Trabalho: Impactos, Inquietudes e Desafios", promovido pelo Instituto de Estudos Avançados da USP e disponível no YouTube teve como convidado palestrante o Psicólogo Matheus Viana Braz, que expos sua pesquisa sobre o tema no Brasil e no mundo.

Desde 2019, ele e outros pesquisadores vêm estudando o microtrabalho — essa modalidade de tarefas digitais controladas por algoritmos, que parece inofensiva, mas carrega um peso brutal sobre a saúde e a vida dos trabalhadores. O foco da pesquisa foi justamente entender esses impactos, especialmente no campo da psicologia. O resultado me surpreendeu, e por isso resolvi postar este texto no meu blog.

Então vamos ao que interessa.

1. O que é o Microtrabalho?

Basicamente, o microtrabalho é a nova versão de linha de produção: só que digital.
Os trabalhadores fazem microtarefas que duram segundos ou, no máximo, um minuto e meio. O pagamento? Centavos. Literalmente.

Essas pessoas estão espalhadas pelo mundo, trabalhando sem qualquer proteção social, de casa, no computador — e em condições de informalidade total.

2. O Trabalho Humano que Faz a IA Parecer Inteligente

Essa força de trabalho invisível se divide em três grandes frentes:

1. Preparação da IA (Anotação e Geração de Dados)

Para que a IA "aprenda", ela precisa ser alimentada com toneladas de dados previamente classificados. Quem faz isso? Humanos, claro.

  • Anotação de Dados: Milhões de pessoas rotulando imagens, transcrevendo, classificando emoções, identificando objetos, analisando sentimentos. É aqui que surgem os vieses algorítmicos de gênero e raça: se os dados vêm enviesados, o resultado da IA também será.

  • Geração de Dados: Criar do zero informações que a IA precisa para treinar.

Caso Real: Fezes do Cachorro

Uma brasileira, 54 anos, aposentada, passou dois dias fotografando fezes de cachorro pela casa (o dela e até o do vizinho, emprestado). A missão: treinar aspiradores da Amazon para reconhecer fezes. Foram mais de 250 fotos. A recompensa? Menos de 15 centavos por foto aceita. Ela espalhava as fezes pela casa toda, e fotografava, o que demosntra a insalubridade da atividade exercida. Trabalho digno de nota científica… ou de piada pronta. (Braz, 2024)

2. Verificação de Dados (Moderação de Conteúdo)

Depois que a IA aprende, alguém precisa checar se ela não fala bobagem. Quem assume esse papel? Outra multidão de microtrabalhadores.

Exemplo: ChatGPT-3

A moderação de respostas "tóxicas" foi terceirizada para trabalhadores quenianos. Eles recebiam menos de $2 por hora para lidar diariamente com descrições de abuso infantil, incesto, tortura, suicídio, zoofilia e assassinato.

3. Imitação da IA (Segurança Remota Humana)

Às vezes, a IA é cara ou simplesmente não funciona. E o que acontece? Humanos são usados como se fossem a IA.

O Caso de Madagascar:

Uma startup francesa vendia um software de visão computacional para flagrar furtos em lojas. Só que, na prática, quem fazia a "inteligência" eram trabalhadores em Madagascar, assistindo câmeras de vigilância em tempo real. Ou seja, seguranças remotos disfarçados de IA de última geração.

Sim, enquanto o mundo elogiava a IA "revolucionária", eram esses trabalhadores que filtravam os horrores.

3. O Perfil da Precarização no Brasil

A pesquisa identificou pelo menos 54 plataformas operando no Brasil. Entre os 477 trabalhadores entrevistados, o cenário é este:

Dados da Pesquisa no Brasil

Gênero: Mais de 65% são mulheres, algo incomum em outros países.

Rendimento: Média de R$ 582 por mês vindos das plataformas. O total mensal gira em torno de R$ 866 (uma minoria consegue pouco mais de um salário mínimo).

Jornada: 45% trabalham 7 dias por semana.

Dependência: Mais de 33% dependem unicamente da plataforma.

Motivações: Flexibilidade, poder trabalhar em casa e pura necessidade financeira.

Assimetria Global: O Brasil paga, em média, $1,8 por hora, enquanto nos EUA/Europa a média é $4,43. A América Latina, portanto, é tratada como um depósito de mão de obra barata, descartável e essencial para manter a engrenagem da IA girando.

Veja abaixo o grafico que crieu para ilustrar a diferença de ganho entre brasileiros e o Norte Global.

4. Saúde Mental e as "Piores Tarefas"

Apesar do marketing sobre "flexibilidade e autonomia", os termos de uso são engessados, a gestão algorítmica é rígida e o resultado é adoecimento.

As fontes de sofrimento mais citadas são: excesso de trabalho, instabilidade, descartar trabalhadores sem aviso, e a sensação de fazer tarefas sem nenhum sentido.

  • As “Piores Tarefas”: podem ser esquisitas (cocô de cachorro) ou moralmente devastadoras (conteúdos violentos e abusivos).

  • Moderação de Conteúdo Violento: Muitos relatam ficar com nojo do ser humano após horas de exposição a discursos de ódio, violência e pornografia.

  • Trabalho Noturno: Para competir por melhores tarefas (postadas no fuso horário das sedes das plataformas), 27% trabalham de 22h à 1h e quase 10% entre 1h e 5h.

E, claro, se der problema, a plataforma não se responsabiliza. Está tudo nos termos de uso: nenhum dano físico ou psicológico é de responsabilidade delas.

5. As Contradições da Invisibilidade

O estudo destaca algumas ironias:

  1. Isolamento: Trabalhadores se sentem sozinhos. Apenas 22% participam de grupos de WhatsApp/Telegram, e os contratos geralmente proíbem contato entre si.

  2. Identidade Profissional: Mesmo precarizados, alguns preferem dizer à família que trabalham "para o Google" ou "com inteligência artificial" — porque falar “tiro foto de cocô de cachorro por 15 centavos” não fica bem no churrasco de final de semana.

A gestão algorítmica faz questão de manter tudo no nível individual, apagando qualquer possibilidade de mobilização coletiva. E enquanto isso, seguimos elogiando a "inteligência artificial" que, na prática, é movida por trabalho humano invisível, barato e descartável.

👉 Por fim, é bom lembrar: as empresas que desenvolvem inteligências artificiais são, em sua essência, capitalistas — e isso significa, em alguns casos, colocar o lucro acima da dignidade humana. A questão que fica é: será que regular apenas o conteúdo basta para garantir boas práticas nos bastidores, ou continuaremos assistindo a situações como as relatadas pelo Professor Matheus Viana Braz se multiplicarem no Brasil?🚀

Informações sobre a Fonte Utilizada: Além das fontes já inseridas nos links presentes no texto, foram utilizadas:

  • Braz, Matheus Viana. O trabalho invisibilizado, precário, por trás da cadeia produtiva global da inteligência artificial. Palestra proferida no Instituto de Estudos Avançados da USP, disponível no YouTube, acessada em 10/09/2025.

6. As Violações à Legislação Brasileira

Sob a ótica do Direito do Trabalho, esse tipo de atividade esbarra em várias violações claras. A Constituição Federal (art. 7º) garante direitos como remuneração digna, jornada limitada, descanso semanal e proteção contra despedida arbitrária. Nada disso é observado no microtrabalho.

Além disso, a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) estabelece vínculo empregatício quando presentes os requisitos da pessoalidade, habitualidade, onerosidade e subordinação. No caso das plataformas, a chamada "gestão algorítmica" exerce controle direto sobre o ritmo, aceitação e qualidade das tarefas — configurando, de fato, subordinação. O discurso da “autonomia” do trabalhador é, na prática, um verniz jurídico para encobrir a informalidade.

Também se violam normas de saúde e segurança do trabalho (NRs do Ministério do Trabalho), já que não há qualquer monitoramento sobre a exposição a conteúdos violentos ou perturbadores, tampouco suporte psicológico. O simples fato de moderadores de conteúdo serem expostos a materiais de violência extrema sem acompanhamento profissional configura descumprimento do direito fundamental à saúde (art. 6º da Constituição).

Em resumo: o modelo de microtrabalho, como vem sendo praticado no Brasil, não é apenas precário — ele é incompatível com a ordem jurídica trabalhista brasileira. A precarização aqui não é efeito colateral, é estratégia de negócio.